Os Substantivos e as Coisas
- fabiaraujoletras
- 14 de out. de 2015
- 4 min de leitura
Eu já observei em algumas crianças pequenas uma fase, entre 1 e 4 anos, em que gostam de brincar de apontar as coisas para que o adulto fale em voz alta qual é o nome daquelas coisas. Elas apontam o céu, você diz "céu"; ou então elas apontam várias partes do corpo e você vai dizendo "barriga", "bochecha", "nariz" e assim por diante.
Vejam que esses "nomes de coisas" formam um grupo de palavras às quais os gramáticos deram um nome. No caso dessa brincadeira, estamos falando de substantivos concretos que são, justamente, os mais fáceis de compreender nas aulas da escola.
Na postagem anterior falamos sobre como as crianças aprendem bem rápido a dizer "mamãe" e como essa é muitas vezes a primeira palavra que elas acabam pronunciando. Vamos pensar um pouco mais nisso? Quando um bebê ainda está no útero, ele é uma parte do corpo da mãe. Ao nascer, embora haja a separação física, a conexão com ela continua sendo extremamente forte por muito tempo. Através da amamentação, do colo e da proximidade física ambos, bebê e mãe, continuam compartilhando alimento, sentimentos, emoções e calor. Nesse período o bebê não pode diferenciar-se da mãe: é como se ambos fossem ainda uma coisa só. Conforme o bebê cresce, vai percebendo e assimilando a ideia de que a mãe é uma outra coisa, separada dele. Logo em seguida, aprende que ela possui um nome, e que há muitas pessoas como ela no mundo. Esse processo de diferenciação entre as coisas e seres é onde mora o conceito dos substantivos.
Mas os substantivos não nomeiam apenas as coisas concretas e visíveis do mundo. Eles representam os nomes de todas as coisas reais ou imaginárias (incluindo emoções, sentimentos etc.) e dos seres reais e imaginários (pessoas, animais, entidades). Eles são, assim, uma classe gramatical independentes das outras palavras. Ele "fecha" as coisas que nomeia dentro de uma forma, um desenho, um espaço limitado: bola, saudade, filho, distância, viagem, Maria, policial, telhado, tijolo.
Então, além dos substantivos concretos também há os abstratos; e da mesma forma eles podem ser agrupados em várias classificações diferentes: comuns, próprios, coletivos etc. Basta que entendamos a que tipo de seres ou coisas eles se referem (e assim também estaremos exercitando nossa capacidade de organizar racionalmente a nossa realidade!).
Tentemos ver nossa mente como um mundo à parte, onde ideias e imagens se misturam, o espaço e o tempo também se misturam e onde há universos dentro de universos. Ali dentro, podemos considerar as palavras, organizadas pela língua portuguesa, como uma maneira de organizar todo esse "caos" para que possamos pensar racionalmente. As palavras surgem, pegam todas aquelas coisas misturadas e lhes dão uma direção, um sentido.
E os substantivos, no meio de tudo isso? Bem, eles seriam os primeiros "objetos" do pensamento, dotados de autonomia e em torno dos quais as outras palavras giram e atuam. Eles seriam como os "corpos" mentais, dotados de um espaço próprio, delimitado.
Mergulhando um pouco mais fundo em tudo isso encontraremos o elo entre as palavras "substantivo" e "substância", que possuem de fato a mesma origem, a mesma raiz. Lembra que conversamos ontem sobre como as palavras possuem uma origem, raízes, uma história?
Mesmo os substantivos abstratos funcionam, dentro da estrutura da linguagem, como objetos que podem ser "vistos" e "pegados", enfim, representam conceitos dotados de substância. Se pensarmos, por exemplo, na palavra "tristeza", que não trata de um objeto e sim de uma emoção ou sentimento, podemos considerá-la uma "coisa" que a gente pode "pegar" e mandar embora, não é verdade?
Você já tinha pensado neles dessa maneira? É interessante ver como podemos "viajar" com esses conceitos, não é? Essa conversa me fez lembrar de poesia e de uma música da qual gosto muito, chamada "Sina", do Djavan. Os primeiros versos da letra dessa música eu transcrevo logo abaixo: "Pai e Mãe
Ouro de Mina
Coração
Desejo e Sina
Tudo mais
Pura Rotina
Jazz..."
Apesar de parecer para alguns que uma letra como essa é construída de forma aleatória ou apenas com o intuito de rimar, observe como ela é feita com vários substantivos - "pai", "mãe", "ouro", "mina", "coração", "desejo", "sina" -, colocados lado a lado, de maneira que a proximidade das ideias contidas em cada um faz com que seus significados se misturem.
Nossa imaginação vai dando lugar, assim, a uma nova paisagem. O significado original de cada um desses substantivos é ampliado, elevado a um outro nível, tanto pela sonoridade assim produzida como também pela proximidade com os outros. É como se essas palavras, assim unidas, estivessem formando uma nova unidade, uma nova imagem e um novo sentimento associado a elas. Isso é algo que a MPB e a nossa poesia fazem bastante e com maestria: encontrar novos significados e conexões dentro dos substantivos, como se eles fossem mesmo verdadeiros baús de surpresas, estendendo assim seu alcance e sua profundidade e ampliando seus horizontes.
Vou pegar como exemplo a expressão "ouro de mina": o que vem à sua mente ao ouvi-la? E de que maneira ela modifica os conceitos de "pai e mãe" do primeiro verso? E a palavra "jazz", por que está aí? Quando ouço essa música, associo a muitas coisas, todas me elevando a um estado de amor, gratidão, alegria e delícia. E você, o que sente?
Para finalizar, o Djavan usa, no final dessa mesma música, uma palavra que ele mesmo inventou: "caetanear". Ele fez isso pegando um substantivo próprio, "Caetano" e criando, a partir dele, uma ação que antes não existia. Estamos entramos agora no mundo dos verbos e é sobre isso que falaremos amanhã. Um abraço e até lá!
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